sábado, 4 de agosto de 2007

A verdade ficou em pedaços

A culpa passou a ser creditada ao piloto.
Voo 3054
Por Jotha Santos
Quando um acidente aéreo acontece, sou sempre o último a dizer que a culpa foi do piloto. Como entusiasta da aviação, sei que os pilotos que chegam ao comando de uma aeronave são extremamente competentes, bons mesmo. Seja na aviação civil ou militar, esses homens extraordinários e suas máquinas maravilhosas fazem o que a maioria de nós jamais seria capaz. São pessoas não apenas preparadas para o ofício, mas que nascem com um talento especial para fazer algo que até pouco mais de um século atrás era considerado impossível.

Voar não é para qualquer um. E quando digo voar, é voar mesmo! É deixar o conforto das poltronas da primeira classe para assumir o assento da esquerda de uma cabine de comando. Ali, com o auxílio da máquina, você voa! Conduzir aos céus um pássaro de ferro de 60 toneladas e traze-lo de volta ao chão em segurança é transformar a magia em realidade. É fazer dos céus a sua morada, e da terra, apenas uma parada obrigatória.

As investigações do acidente com o Airbus da TAM em 17 de julho estão apenas no começo. A forma como estão sendo conduzidas, no entanto, é uma outra história. Ainda que qualquer conclusão neste momento seja obviamente precipitada, alguns setores da imprensa se apressaram em colocar a culpa nos pilotos do A320. Com a abertura das caixas pretas (que precisam ser analisadas em um contexto muito mais amplo), a hipótese de que a pista escorregadia de Congonhas tenha causado o acidente foi deliberadamente deixada de lado. Não se fala mais nisso. A culpa passou a ser creditada ao piloto.

As informações em alguns jornais foram simplesmente jogadas sem nenhum tipo de critério ou avaliação mais precisa e profunda dos fatos. O capitalismo selvagem mais uma vez mostra sua cara, em um mundo onde vender mais jornais é infinitamente melhor do que vender a verdade. Assim como colocar mais aviões nos céus é infinitamente melhor do que investir na segurança do setor aéreo.

Como se não bastasse o sofrimento causado pela perda de um ente querido de forma tão violenta, pais, filhos e esposas dos comandantes do voo 3054 agora têm que buscar forças para suportar e enfrentar a voracidade inconsequente da imprensa, que se preocupa apenas com a contabilidade no final do mês.

Com a descrição dos diálogos nos minutos finais do Airbus da TAM, fica claro que muitas outras coisas aconteceram dentro daquela cabine. As investigações devem revelar algumas delas, mas outras, jamais saberemos. A verdade, assim como a vida dos envolvidos na tragédia, ficou em pedaços. Por esse motivo, é bem mais fácil, rápido e conveniente dizer que o manete direito foi colocado na posição errada pelo piloto do que explicar que existe a possibilidade do computador da aeronave ter feito uma leitura errada das posições do controle de aceleração da turbina. Nós não entenderíamos bem, é claro. Somos todos “Homers Simpsons”.

O país está indignado. Protestos contra o caos aéreo eclodem a cada dia. Aeroportos estão cada vez mais sobrecarregados. A segurança fica em segundo plano. Os céus estão congestionados. Familiares das vítimas lutam por justiça. O governo nada faz. A roda do capitalismo gira, mas no sentido contrário ao progresso. O pato, portanto, deve ser pago pelos pilotos, que não podem se defender.

Todo acidente aéreo, sem exceção é conseqüência de uma soma de fatores. Os pilotos são treinados para enfrentar as mais variadas situações de emergência. Incidentes aeronáuticos acontecem todos os dias no mundo inteiro e nós não ficamos sabendo. Muitos deles só não se transformam em acidentes por causa da perícia dos pilotos. Isso, no entanto, quase nunca é exaltado pela imprensa, afinal, notícia sem o componente tragédia não é notícia lucrativa.

Após o acidente da TAM, surgiu a informação de que em 10 anos, outros treze incidentes no momento do pouso aconteceram com aeronaves do modelo A320 da Airbus. Pilotos relataram desde problemas com reversores pinados, turbinas superaquecidas, leituras incorretas dos computadores até defeitos no trem de pouso principal dos aviões.

Mas isso é muito complexo para todos nós. É mais fácil fazer acreditar que um comandante com quase 15 mil horas de vôo tenha errado as posições dos manetes na aproximação final (um erro inimaginável até mesmo para um aluno de aeroclube) do que a aeronave ter apresentado algum tipo de falha.

Se conduzidas seriamente pelos órgãos competentes (e não por uma CPI com deputados que de aviação não entendem patavina), as investigações podem nos trazer lições preciosas – que se bem aprendidas – nos mostrarão onde erramos e onde não podemos errar mais. Piloto induzido ao erro, defeito na aeronave, manetes, computadores, pista escorregadia, falta de infra-estrutura aeroportuária e muitas outras circunstâncias precisam ser analisadas com critério, com seriedade. Em dez meses, 353 pessoas morreram nos dois piores acidentes aéreos do Brasil. Os culpados são muitos, mas eles não estão lá em cima nos céus, comandando uma aeronave.

Em tempo
Os deputados da CPI do Apagão Aéreo disseram agora que a pista de Congonhas não foi um dos fatores principais para o acidente com o Airbus. Eu vejo de uma maneira um pouco diferente. A falta de ranhuras ou um possível espelho d’água na pista talvez não sejam mesmo as causas dos problemas de frenagem que a aeronave apresentou, mas a tragédia só aconteceu por falta de uma área de escape e por Congonhas estar localizado onde está.

Vale lembrar os acidentes nas Filipinas em 98 e em Taipei em 2004, quando aeronaves do mesmo modelo possivelmente apresentaram os mesmos problemas do vôo 3054 e não conseguiram parar na pista. Invadiram as áreas de escape (que estão lá exatamente para isso) e a tragédia foi evitada. Três pessoas morreram em terra nas Filipinas porque moravam em uma ocupação irregular próximo à cabeceira da pista. Com uma pista mais eficiente e uma área de escape, a tragédia em São Paulo provavelmente seria mais um incidente nas estatísticas aeronáuticas da Airbus. E nós, já teríamos esquecido.

Foto: Divulgação Airbus

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