segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Canções de uma vida ordinária

Eu deveria ter aprendido a tocar guitarra. É assim que se faz!
Por Jotha Santos
Faz tempo que as meninas do “Leblon” não olham mais pra mim, afinal, eu sou apenas um rapaz latino americano sem dinheiro no banco, sem parentes importantes, e vindo do interior. Foram vários os sonhos de verão numa praia, mas a onda do mar apagou. E nem foi tão lindo assim. Sempre soube que a felicidade é como uma estrela que não está lá. Um conto de fadas, uma história comum. É como chuva de prata que cai sem parar e quase me mata de tanto esperar. E é aí que eu me afogo num copo de cerveja naquela mesa de bar, pois assim caminha a humanidade; com passos de formiga e sem vontade.

Meu caso é mais um. É banal, mas preste atenção, por favor. Eu não sou cachorro, não, pra viver tão humilhado e ser tão desprezado. Por isso eu bebo e choro, e choro com razão. Choro e ninguém liga pra mim. Eu não sei o que fazer da minha vida. É a história dolorosa de um fracasso. Eu machuquei a mim mesmo hoje para ver se eu ainda sinto. O que eu me tornei? Todos os que eu conheço vão embora no final. 

O médico estava com medo que o meu figueiredo não andasse bem. Ele receitou jurubeba, alcachofra, e de quebra, carqueja também. Tentaram me mandar para a reabilitação, mas eu disse: Não, não, não! Não há nenhum médico que possa curar minha doença. Tenho uma doença permanente e vai ser preciso mais do que um médico para me receitar um remédio. Talvez o Dr. Robert. Vou continuar orando pela chuva que cura para restaurar outra vez a minha alma.

Eu tenho que instalar fornos de microondas, entregar cozinhas sob medida, carregar geladeiras e televisões em cores. Eu deveria ter aprendido a tocar guitarra. É assim que se faz. Todos os dias parecem um pouco longos, aconteça o que acontecer. Em mais três dias eu vou deixar essa cidade e desaparecer sem rastros. Em um ano, a partir de agora, talvez tudo tenha se acalmado. Se eu pudesse começar de novo, a milhões de milhas daqui, eu me salvaria. Eu acharia um caminho.

Há tantos mundos diferentes. Tantos sóis diferentes. Todo homem tem que morrer e estas montanhas cobertas de neve são um lar para mim agora. Eu sabia que seu eu tivesse a minha chance, eu poderia fazer aquelas pessoas dançarem, mas eu sabia que estava sem sorte no dia em que a música morreu. Eu já tive amores ruins o bastante. Chega de amores que não prestam. Eu preciso de algo que eu possa me orgulhar. Eu quero me libertar. Eu tenho que me libertar! 

Eu sei que você acredita em mim e isso é tudo o que eu sempre precisei. Me levanto e nada me faz cair. Eu não sou o pior que você já viu. Você entende o que eu quero dizer? Eu poderia muito bem pular! Chorando, minhas lágrimas continuam caindo a noite inteira. Esperando, me sinto tão inútil e eu sei que isso é errado. 

Sábado à noite, por volta das oito, eu sei o que vou fazer. Eu vou pegar a minha garota e levá-la ao cinema. Quem se importa com o filme que você vê quando se esta abraçado com sua garota na última fila? Do parque, você pode ouvir o som alegre de um carrossel e quase sentir o gosto do cachorro-quente e das batatas fritas que eles vendem. Eu me fortaleci e eu aprendi como me arranjar. Você pensou que eu me rasgaria em pedaços? Você pensou que eu deitaria e morreria? Eu sei que permanecerei vivo. Eu tenho minha vida toda pela frente. Eu vou sobreviver, pois este ainda não é o dia em que morrerei.


Texto livremente inspirado em canções de: Amy Winehouse, Beatles, Belchior, Bon Jovi, Buddy Holly, Dire Straits, Don McLean, Eric Clapton, Fábio Jr., Gal Costa, Glória Gaynor, João Nogueira, Johnny Cash, Luan e Vanessa, Lulu Santos, Nelson Gonçalves, Odair José, Paralamas do Sucesso, Queen, Reginaldo Rossi, Só Pra Contrariar, The Drifters, Van Halen, Waldick Soriano.

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Eu entendo a Fernanda Lima

O controle está do outro lado da tela.
Por Jotha Santos
Quando a apresentadora Fernanda Lima declarou: “É muito difícil fazer esse programa. A minha profissão nunca foi criadora de formato, roteirista, e escrever esse programa é muito difícil. O processo criativo é de um sofrimento terrível pra mim...”, eu entendi o que ela quis dizer. É complicado mesmo tentar fazer coisas as quais não temos inclinação, destreza e liberdade. E não é culpa dela. Processos criativos e de conteúdo são naturalmente complexos e labirínticos, principalmente em um momento em que idealistas e ideologias condicionam a onipresença de seus discursos sorrateiros. E isto sempre existiu. Tentar fazer algo de qualidade e digno de aplausos, neste cenário, é quase sempre uma tarefa hercúlea.

Lembro-me uma vez quando trabalhei como repórter policial no interior de São Paulo. Eu sabia fazer aquilo. Era minha praia. Foi então que a editora me pediu para cobrir as férias da repórter da editoria de Política. Eu não conhecia aquele mundo, mal entendia a linguagem daquela turma e não me sentia nenhum pouco a vontade entre homens engravatados e mulheres de meias-calças. Para piorar, quando chegava à redação, o texto empacava, a narrativa era medíocre e finalizar uma única pauta diária era um tormento. Foi um desastre.

Não posso comentar aqui especificamente sobre o conteúdo do programa de Fernanda Lima. A atração chega ao seu final sem que eu a tenha visto, mas entendo o momento pelo qual a esposa do Rodrigo “Mr. Maravilha” Hilbert está passando. Quando algo que fazemos e nos dedicamos torna-se um sofrimento, é hora de repensar. No lugar dela eu faria o mesmo, ainda que concordasse (ou não) com os ideais e princípios da “família Marinho”, como ela aparentemente concorda e reproduz. Tudo isso passa a ser irrelevante no momento em que tais valores, independentemente do conteúdo, já não são mais transmitidos de forma natural, ética, pertinente e com qualidade criativa. E se o trabalho passa a ser um torturante calvário, difícil será encontrar nele algum predicado. O melhor mesmo é ponderar. Ela tem talento e vocação inquestionáveis, mas talvez seja esta a oportunidade de um novo direcionamento. Um recomeço.

Antes de voltar para o conforto das delegacias, tiroteios, assassinatos, suicídios e textos explosivos, recebi algumas críticas pelo trabalho na editoria de Política. Chegaram a ligar na redação para reclamar, pois algo estava muito “diferente”. Até o prefeito protestou! As críticas são assim e elas também determinam em quais águas podemos navegar. As de Fernanda Lima me pareciam muito perigosas; pelo tema, por suas convicções e pela forma como conduziu seu trabalho naquele cargueiro de caprichos e vaidades chamado Rede Globo. Pelo que li, a audiência caiu, a desaprovação foi brutal e a medida mais razoável foi decretar o fim da atração.

Segundo Fernanda Lima, “Amor & Sexo”, também a afastava de casa, dos filhos e do marido, deixando tudo ainda mais complicado, afinal, quem é que consegue ficar muito tempo longe do homem mais espetacular, esplêndido e sensacional que a natureza uma vez criou?

Uma pausa para reflexão talvez seja uma boa ideia para ela neste momento. Vai curtir a natureza, os pequenos e o super marido. Comer carne de crocodilo caçado, limpo e preparado por ele. Dormir em engenhosas cabanas improvisadas na selva com água encanada e eletricidade igualmente fornecidas por ele. Vai ali contar uma piada, assistir filmes, jogar vídeo-game, andar de bicicleta e nadar pelada no rio. Comer brigadeiro, milho assado e cachorro-quente. Vai ali ler um bom livro, escrever anedotas, contos de amor e ouvir uma boa música. Faz bem para a alma e o coração. Volte renovada e faça algo que traga contentamento, não necessariamente para os outros. Faça tudo de forma genuína, mas sem forçar a barra, pois ela pode se dobrar e, por fim, se quebrar. Só não vai ali ouvir o Rodrigo Hilbert cantando no comercial da Tim, pois isso pode não ser assim tão salutar, afinal, até ele tem limites.

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Heróis negros não são permitidos!

Seria o primeiro Natal juntos entre pai e filho.
Por Jotha Santos
Heróis negros são sempre muito legais. E não há nenhuma relação com “representatividade” ou discurso de inclusão de “minorias”. Isso é bobagem. Eles surgiram muito antes disso. Pantera Negra, Tempestade, Raio Negro, Cyborg, Luke Cage, entre tantos outros. Uau! Eles são incríveis, honrados, venerados e respeitados por todos. Mas com Jemel Roberson não foi assim. A ele não foi dado o respeito e admiração por sua coragem. Suas honrarias serão concedidas apenas por seus familiares e amigos em seu funeral. Na vida real, heróis negros não são permitidos. 

Segurança em um bar de Chicago, Jemel Roberson foi morto por um policial enquanto imobilizava um atirador. Ele havia rendido um homem que abriu fogo dentro do estabelecimento na madrugada de domingo (11). Roberson conseguiu desarmar e segurar o criminoso no chão com uma arma apontada para suas costas enquanto aguardava a chegada das autoridades. A situação estava sob controle. Quando a polícia chegou, ao vê-lo armado, abriu fogo. Jemel Roberson foi declarado morto logo após dar entrada no hospital. 

Sem perguntas, sem analisar a situação e agindo por “instinto”, o policial que atirou em Roberson apenas relatou “ter abatido um elemento com uma arma”. “Todos que estavam lá gritaram que ele era um segurança, mas é isso: Viram um homem negro com uma arma e começaram a atirar”, relatou uma testemunha. O segurança tinha porte legal de arma de fogo. Outras quatro pessoas ficaram feridas sem gravidade, inclusive o atirador. Ao evitar um final de madrugada trágico para desconhecidos, o rapaz de apenas 26 anos encontrou o seu próprio fim. A família argumenta e acredita que Jemel foi morto apenas pelo fato de ser negro. Eu também acredito. Policiais despreparados e preconceituosos estão em todos os lugares. Gostaria muito que por um acaso do destino, Jemel Roberson fosse François Armand Beaumont, branco, rico e bem sucedido, que após um bravo ato de heroísmo, veio a salvar a vida de muitas pessoas em um café na Champs-Élysées. Seria ele aclamado por todos, reverenciado e laureado com todas as pompas, mas a maior recompensa de todas seria estar vivo! 

Quero repetir aqui mais uma vez o seu nome: Jemel Roberson, 26 anos, negro. Sei que ele não será lembrado por muitos. Os comentaristas da grande mídia, personalidades e influenciadores da banalidade, isolados em seus casulos de hipocrisia, pouco se importam. Heróis são apenas aqueles que lhes rendem benesses lucrativas, vantagens ilícitas, promessas egoístas, associações espúrias e relações viciadas. São vencedores de reality shows, youtubers desprezíveis, políticos gatunos, peladões e peladonas, “lacradores” ou qualquer outro palerma que esteja dentro dos critérios peçonhentos de interesse e relevância baseados em preconceitos. 

Heróis, para eles, não podem ser pessoas comuns, gente de bem. Roberson era um promissor tecladista das igrejas da região em que morava. Trabalhava à noite e fazia suas economias para comprar um novo apartamento após o nascimento de seu filho. Sua esposa, Avontea Boose desabafou: “Seria o primeiro Natal do meu filho com o pai, mas agora ele vai perder tudo”. Roberson tinha o desejo de se tornar um policial. Foi morto justamente por alguém que materializava o seu sonho. 

Da ficção para a realidade o abismo é gigantesco. Panteras Negras e Raios Negros estarão lá para salvar o dia e serão aplaudidos, mas apenas na magia do Cinema. Aqui do outro lado, onde muitos heróis de todas as cores travam suas batalhas, as honrarias não existem. O ato de coragem em uma madrugada fria será apenas uma nota de rodapé, um comentário ácido e uma análise saturada de hostilidades e prejulgamentos. Poucos darão a verdadeira importância dos acontecimentos de domingo em Chicago. Assim são os heróis da vida real. Os heróis das coisas que realmente importam, do amor ao próximo, da doação e entrega mesmo diante do perigo iminente e do desejo de “fazer o bem sem olhar a quem”. Dos pequenos atos aos mais grandiosos feitos, em cada esquina nasce um novo herói, um novo Luke Cage, um novo Lanterna Verde ou uma nova Tempestade, mas hoje, para mim, só um nome realmente deve ser memorável. Este nome é Jemel Roberson.

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