quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Fundamentos da EVI e a arte de escrever para o nada

Sozinho, você é a fonte, o redator, o editor e a crítica.
Por Jotha Santos
Escrever para o nada é uma arte. Leva tempo e precisa ter uma boa dose de demência, carreada por um otimismo alucinógeno que apenas os mais atormentados possuem. Pode parecer frustrante para alguns, mas é possível superar as barreiras do desencanto trabalhando corretamente a extraordinária habilidade de se comunicar com o vazio. É o que eu chamo de EVI - Escrita no Vácuo com Insanidade.

Quem nunca falou com as paredes? Com o controle remoto, a escova de dentes e a cafeteira elétrica? Quem nunca teve aquele dedo de prosa com suas sandálias Havaianas, alertando-as sobre a responsabilidade de manter as solas para baixo a fim de evitar o trânsito prematuro de sua progenitora até as regiões celestiais? Ao escrever, você faz praticamente a mesma coisa, mas certo de que paredes, sandálias, ventiladores e xícaras de café podem não apenas ouvir, mas também apreciar uma boa leitura.

Claro que escrever para um grande público e não apenas para o limbo e objetos inanimados deve ser bom. Saber que aquelas linhas irão alcançar uma infinidade de pessoas de todos os tipos e das mais variadas ideologias, convicções e princípios é, seguramente, uma experiência singular. Mexer com a sinapse alheia usando apenas palavras é um combustível incomparável para a inspiração literária. Ao menos é o que imagino, já que tamanha virtude não faz parte da vida daqueles que compõem verbetes para máquinas de lavar roupas.

Mas escrever mesmo sabendo que ninguém da a menor importância também tem lá o seu valor. Na verdade, é o pilar que sustenta boa parte do conceito de EVI. Por experiência própria, sei que não é fácil superar frustrações, fracassos e falsas expectativas por anos a fio.  A verdade é que é bem difícil, já que a EVI não possui nenhuma das benesses daqueles que escrevem para um sem-número de pessoas. Na Escrita no Vácuo com Insanidade não há feedback, indagações, objeções, reflexões, desmentidos e tapinhas nas costas. Há apenas o absoluto nada; o vácuo. Sozinho, você se torna eternamente responsável por aquilo que escreve, mas não cativa.

Desde que a escrita nasceu, lá nos tempos das páginas de pedra e cerveja quente, o homem sempre manifestou o desejo de propagar suas ideias. Todo sumeriano erudito e bem letrado esperava por uma olhadela em sua rocha talhada, repleta de notícias sobre avistamentos extraterrestres, crônicas da vida cotidiana, análises astronômicas e informações de última hora. Tenho certeza de que quando isso não acontecia, o desapontamento era grande, afinal, naquela época a EVI ainda não havia sido inventada. Pobres sumérios!

Da idade da pedra para as redes sociais, a coisa fica ainda mais constrangedora desafiadora. Dedicar algumas horas do seu precioso tempo para cunhar algumas linhas de sabedoria, compartilhá-las com entusiasmo entre milhares (talvez milhões) de seres humanos e não obter uma única visualização é algo que apenas os mais versados em EVI conseguem absorver sem mergulhar em profunda melancolia. Saber que o seu estimado ajuntamento de frases e orações tem para os outros o mesmo valor que uma nota de três reais é desanimador, eu sei.  Mas a epopeia do poeta ignorado precisa ser observada pelo ângulo positivo: O vazio de escrever para o indeterminado jamais poderá impedi-lo de continuar. Bom ou ruim, certo ou errado (melhor optar pelo certo), intrigante ou enfadonho, útil ou desnecessário, e por mais invisível que o seu texto possa parecer, em seu universo de palavras, você é a fonte, o redator, o editor, o leitor e a crítica. Não há deserto literário que não possa ser domado quando você está no controle de boas idéias, um lápis bem afiado e um punhado de páginas em branco. Quem se importa se alguém vai ler ou não?

Na EVI, o mais significativo e meritório mesmo é gravar em palavras aquilo que se deseja sem esperar a apreciação de outrem. Sem aguardar qualquer tipo de reação, contestação, louvor ou elogio de um semelhante (Havaianas não são semelhantes - eu estou falando das sandálias, claro), seja cunhando uma tábua de argila com ensinamentos de outras galáxias sobre viagens no tempo ou redigindo um modesto blog sobre assuntos aleatórios e sem importância. O princípio da Escrita no Vácuo com Insanidade não aspira contemplação ou recompensa. Com uma pequena dose de loucura e teimosia, apenas confere ao escritor anônimo a capacidade de reunir, registrar e transmitir palavras, mesmo sem ver ou ter a quem.

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

A Mosca de Banheiro - Parte III

Cadê a Greta nessas horas?
Se a Greta lutasse mais pelas verdadeiras causas...
Por Jotha Santos
Antes que meus caríssimos leitores pensem que eu tenho algum tipo de fixação por moscas de banheiro, afirmo categoricamente que não. Não é isso (ou talvez tenha e não queira admitir)!  O fato é que, em um dia qualquer de quarentena compulsória do estranho ano de 2020, o tema brotou novamente como um caroço de feijão no ouvido e tornou-se o assunto mais comentado do Twitter na ocasião. E eu juro que não estava procurando nada sobre. Deve ser algo como aqueles sonhos que nos perseguem a vida inteira e a gente nunca consegue se livrar, ou parte das minhas alucinações dípteras psicodídeas já relatadas em textos anteriores.

É fato que muitas pessoas ainda desprezam a pobre mosquinha de banheiro e isso me incomoda. Desprezam mais do que dinheiro falso, fita K7 do Menudo e frases da Dilma. Mal sabem a utilidade dessas criaturas aladas para o equilíbrio e manutenção da nossa fauna sanitária. E é lá no banheiro que elas jogam em casa. Se você alguma vez observar uma delas fora do seu habitat natural (na sala de estar, por exemplo), faça uma boa ação: Imagine-a como uma tartaruga perdida do Projeto Tamar (o nível de importância é equivalente) e conduza-a cuidadosamente ao ralo mais próximo em seu WC.

Se a Greta Thumberg lutasse mais pelas causas dessas singelas entidades felpudas que habitam a casinha, o mundo seria melhor. Quantas delas você abateu só hoje em seu ligeiro banho matinal? Quantas vidas você eliminou borrifando Mr. Músculo em suas diminutas larvas? Larvas que jamais poderão experimentar a metamorfose da vida, ainda que curta. Outro dia eu li que jogar água fervente em ralos e rejuntes pode auxiliar no extermínio das pobres coitadas. Cadê a Greta nessas horas?

Uma mosca de banheiro vive apenas uns 15 dias, ou seja, menos tempo do que você levaria para programar um videocassete ou aprender inglês na Open English. Parece pouco, mas neste efêmero ciclo de vida, ela faz muito por você. Apesar de não voar lá muito bem (daí o motivo de sua fácil captura e matança desenfreada), os acanhados insetos do gênero Psychoda são seus maiores aliados na preservação e salubridade de sua casa de banho (entre outras coisas). Eles se alimentam de restos, inclusive os seus! Pele, pelos, cabelos e outros materiais orgânicos desenvolvem bactérias que servem de refeição para os pequenos odiados (muito mais do que oito, dependendo da pujança aplicada na limpeza do seu WC). Limo, bolores e fungos contidos em azulejos e ralos são como um banquete romano.

Apesar de carregar consigo a obscura denominação “mosca”, sua melhor ouvinte em momentos de cantoria no chuveiro é completamente inofensiva. Não transmite nenhum tipo de doença, não suga seu sangue como o Conde Drácula e é incapaz de desferir uma única picada. A mosca de banheiro jamais aferroa as mãos de quem a alimenta. Disciplinada, é quase impossível encontrá-la, por exemplo, em sua cozinha, o que poderia causar certo desconforto, muito embora o setor gastronômico do seu lar tenha o ambiente propício para o surgimento de coisas bem mais repulsivas. Uma mosca de banheiro existe apenas para colaborar com o ecossistema sanitário de sua latrina, tão bem decorada com capinhas e tapetes de crochê feitos pela sua avó em 1984. Deveria se chamar “Borboleta de Toalete”, algo muito mais poético e digno de sua nobre função.

Eu entendo que se a população de psychodas estiver crescendo exponencialmente a ponto de incomodar as visitas, é conveniente realizar algum tipo de intervenção. Mas vá com calma. Troca de sifões, telas nos ralos, litros de Qboa e água fervendo uma vez por semana podem ser soluções drásticas demais e você será o único responsável pela iminente extinção desse simpático espécime, pelo menos em sua casa. Um recurso rápido, eficaz e indolor consiste em usar uma raquete elétrica - daquelas vendidas em semáforos - a fim de eliminar apenas o excedente. Descarte os corpos rapidamente. Comprar um sapo e criar aranhas também ajudam.

Logo mais, ao adentrar seu sanitário para atividades de cunho íntimo e que não dizem respeito a mais ninguém, olhe, contemple e reflita sobre aquelas singulares criaturas. Elas só querem um pedacinho de azulejo, uma fresta de rejunte, um ralo para preservação da espécie e um bocadinho de microrganismos naturalmente fornecidos por você. Em troca, te ajudam na limpeza profunda sem reclamar, fazer greve, picar, invadir outros cômodos, transmitir alguma moléstia bizarra e, principalmente, sem zumbir no seu ouvido de madrugada acabando com o seu sono. Salve a mosca de banheiro!

Foto: https://www.semanticscholar.org/paper/Predatory-Activity-of-Psychoda-alternata-Say-(-%3A-)-Bardicy/bf62a2b47be0ea8ee1b595e21d3d5acb9be2d6d9

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