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quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Quanto tempo o tempo tem?

No coador de pano, o tempo passava seu café e narrava suas histórias.
Por Jotha Santos
Quanto tempo têm 106 anos? É tempo suficiente para uma pequena semente aflorar como uma frondosa árvore de sombras acolhedoras. É tempo o bastante para a chuva molhar o deserto, uma ilha emergir no oceano, um vulcão despertar de seu sono, ou ainda, testemunhar o rabiscar do próprio rosto nos traços das incontáveis estações. É tempo para ver a vida mudar, dissipar gerações, alcançar os céus, provar das guerras, contar tragédias. Quanto tempo o tempo tem?

Há pouco mais de um século, o tempo estava lá quando o Baião nasceu. Dividiu espaço com os pais de Tieta e de Ave Maria no Morro. O tempo estava lá quando ninguém sabia ainda o que eram vitaminas, raios laser, Teoria da Relatividade, linha de produção e bomba atômica. O tempo estava lá quando os antibióticos, a televisão e os foguetes transformaram o mundo. Quando a corpulência era bela, as saias subiram até os joelhos, as ruas ficaram cheias e os homens pisaram na Lua. 

No coador de pano, o tempo passava seu café e narrava suas histórias. Todos queriam ouvir. Jovens e crianças olhavam com admiração. Na comunidade em que dividia generosidade e experiência, apreciar pequenas doses de bondade e conhecimento era programa indispensável. Ali, numa singela casa de objetos adornados em tricô e crochê, o relógio de mesa lhe contava o passar das horas. Viajar ao passado era permitido a qualquer um. Só bastava bater à porta.

Mas o mal que destrói avizinhou-se daquele lugar. A estupidez e a barbaridade silenciaram o tempo. O tempo não existe mais. O sorriso esquadrinhado pela baliza de um século deixou de resplandecer e aquelas histórias extraordinárias não serão mais contadas, pois o tempo parou. Os mais moços agora ouvem apenas o som do silêncio e as memórias da tristeza. O coador está vazio. O café não mais exala seu aroma de alegria. Quanto tempo têm 106 anos? Não o bastante para conquistar o perdão, a misericórdia e a compaixão desse mundo, pois o mundo é mau e o mal não conhece perdão. 

Trinta reais de um velho porta niqueis foi o valor dado pelo mal ao tempo de incalculável valor. Antônia Conceição da Silva, brasileira, 106 anos, era a verdadeira personificação do tempo. Um século de inestimável sabedoria, recontos, prosas e versos que legavam aos seus o verdadeiro significado da grandeza que só o tempo pode construir. Mas o tempo agora foi contar suas aventuras em um lugar diferente. Um lugar onde muitos chegaram antes dele, mesmo passando por aqui bem depois dele. Um lugar onde as ruas são de ouro e repletas do brilho de pedras preciosas e jaspe claros como os cristais. Onde não há choro e no centro de um formoso jardim, a Árvore da Vida, aquela que cura e restaura. Onde o mal não pode mais alcançar. O tempo veio e se foi. E o tempo era Dona Antônia Conceição da Silva, brasileira, 106 anos.

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